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Foto do escritorMaria Clara Bastos

As nuances da força estética na simbiose entre ficção e documentário

Atualizado: 30 de ago. de 2022

A partir do filme “Iracema, uma transa amazônica”.


Iracema, uma Transa Amazônica, é um filme irreverente, com linguagem e forma potentes em ecoar sua força estética, política e histórica. Ele delineia as curvas da vida da personagem Iracema em seu constante movimento ao longo das águas e das terras da região amazônica, que parecia despertar o potencial econômico que levaria ao crescimento do país nas próximas décadas. O território como a esperança da nação, e a menina afogada nas correntezas das mazelas sociais que foram esquecidas no meio da construção da estrada Transamazônica.

A narrativa segue uma estrutura de road movie episódico, com Iracema (Edna de Cássia) em um barquinho popopô partindo de um igarapé no interior do Pará a caminho da cidade de Belém. Em paralelo, é apresentado Tião Brasil Grande (Paulo César Pereio), um gaúcho que trabalha como caminhoneiro, no transporte de madeira ilegal pela Transamazônica. Eles se conhecem em Belém, enquanto ela tenta se prostituir nas noites da cidade, e embarcam em uma jornada pelos âmagos das estradas esburacadas, e muitas vezes sem asfalto, da Transamazônica, projeto do então governo militar, que buscava integrar a região com o resto do país. Iracema, Tião, e a estrada amazônica – esses são os três protagonistas que cerceiam o imaginário do filme, entre o Brasil fictício e puramente real da década de 1970.

A obra se consolida na abrangência de um cenário além do ficcional, retratado nas personagens de Iracema e Tião, e se estende a partir da fronteira proposta pelos diretores Jorge Bodanzky e Orlando Senna, na simbiose entre o real e a ficção. “A cada momento do filme há uma situação complexa, feita de interação entre dois registros (o da ocorrência do aqui-agora e o da construção da cena imaginária que abriga as personagens)" (XAVIER, 2009, p. 76). É uma fusão estética que transforma a experiência cinematográfica da obra, confunde a percepção entre a arte e a vida, em um resultado simplesmente humano e brasileiro, de forma crua, a realidade exposta a partir do olhar dos cineastas, na ação de pessoas reais, com suas vidas e relatos transbordando sobre a tela.

O decorrer das ações ficcionais e documentais apresenta-se de uma forma tão natural e fluida, que se torna extremamente complexo pontuar se é a ficção se manifestando sob o real, ou o real sob a ficção. E talvez essa seja a característica mais interessante dessa fusão – ela é tão bem realizada, que suaviza o limiar que diferencia os dois pontos arbitrários, forma uma imagem homogênea e coloca o espectador diante de um misto entre entusiasmo e dúvida saborosos – de não saber encontrar a diferença. Nesse sentido, Ismail Xavier pontua:

Iracema é o exemplo lapidar de uma mistura de gêneros que desafia nossos hábitos de leitura, põe em cotejo premissas da ficção e do documentário clássicos, trabalhando com ironia a relação entre imagem e real, sem renunciar a uma busca de efeitos de verdade derivados da clareza com que se expõe as regras de seu próprio jogo. Dessa maneira, sem se limitar à questão do documentário, gênero no qual, em sentido estrito, não se encaixa, o filme a solicita em profundidade, inserindo-se no terreno das indagações sobre a objetividade e a isenção. (XAVIER, 2004, p. 76)

O presente ensaio, portanto, não busca estabelecer a oposição entre os dois gêneros, mas destacar a qualidade estética que a união entre eles proporciona para o filme, a partir da singularidade em retratar sujeitos reais e expor a subjetividade de minorias pouco apresentadas no cinema midiático. "O cinema documentário tem, portanto, a chance de se ocupar das fissuras do real, daquilo que resiste, daquilo que resta, a escória, o resíduo, o excluído, a parte maldita" (COMOLLI, 2008, p.172). Em termos de Brasil, o filme vai para a região mais deslocada do país, a Amazônia, e ironiza a questão identitária do brasileiro, utilizando a figura mítica da Iracema de José de Alencar, "a virgem com lábios de mel", a escancarando em face à uma Iracema da realidade moderna – uma menina de origem indígena que nega sua herança, e aos 15 anos entra na prostituição, em uma vida miserável posta no vai e vem dos caminhoneiros, transitando em uma viagem para lugar nenhum.

Ao reescrever o mundo, o filme realiza uma narrativa fragmentada, escrita a partir dos acontecimentos "do aqui e agora". As personagens de Iracema e Tião, jogadas no mundo real, ganham muito mais autenticidade, nos relatos improvisados e nas entrevistas documentais, elas transbordam da imagem ficção para sujeitos da realidade. Como expressa Jean-Louis Comolli, "Os filmes documentários não são somente abertos para o mundo: eles são atravessados, furados, transportados pelo mundo. Eles se apresentam de uma maneira mais forte que eles mesmos, maneira que os ultrapassa e, ao mesmo tempo, os funda." (COMOLLI, 2008, p. 170).

A relação entre cinema e documentário sempre foi latente, o registro documental inaugurou o cinema, na primeira sessão pública das fitas dos irmãos Lumière, em Paris no ano de 1895, no movimento clássico dos empregados franceses saindo de seu expediente de trabalho em uma fábrica, e do trem chegando na estação. Anos mais tarde, em 1929, O homem com a câmera de Vertov realizou um marco no cinema e sua conversa com o documentário. E tiveram muitos outros, Flaherty, Jean Rouch, Godard; no Brasil, Eduardo Coutinho e Jorge Furtado são conhecidos na realização de obras que flertam entre cinema e documentário.

O experimento documental explorado em Iracema, retrata a população amazônica, desde os ribeirinhos extratores de açaí nas margens dos rios, até jovens mulheres que vivem da prostituição nas margens das estradas. O formato de documentário funciona para evidenciar, talvez de forma mais escancarada, as temática de exploração que rodeiam o filme – a prostituição infantil; a construção de uma estrada que ignorou o cenário social, geográfico e cultural dos moradores da região; e o desmatamento desmedido que proporciona a venda ilegal de madeira.

Nesse sentido, é irônica a forma com a qual o filme trata a construção ufanista do projeto militar da Transamazônica e dos habitantes à margem de seus 4260 quilômetros de extensão – mostrando o que a estrada realmente trouxe para a região. Esses habitantes, analogamente estampam a população brasileira que vive à margem da sociedade, seja dentro da mítica região Norte – e da problemática de seu deslocamento histórico e distanciamento geográfico do restante da nação –, como também no recorte da vida nos interiores amazônicos, onde a legislação de terras e os direitos civis não alcançam.

O filme constrói uma potência estética imersiva e forte na exposição dos detalhes da realidade, ao fixar a câmera no rosto da população, ao escutar sua voz e seu sotaque, e na fotografia curiosa e atenta, que descobre cantos escondidos em cada uma das locações escolhidas. A constituição desse cenário é marcada pelas nuances de cada recorte geográfico e por cada uma das pessoas entrevistadas, nas falas tão sinceras e naturais do povo e de sua realidade, no trabalho, na dança, na religião, e na violência. A representação do real e de suas fissuras imperfeitas – a desordem em seu modo de vida – são o que garantem a necessidade de um relato documental, é algo que não cabe no roteiro tradicional (COMOLLI, 2008).

Inicia-se nas águas barrentas dos rios amazônicos e nos barquinhos popopô, que para algumas cidades são o único meio de transporte acessível. A narração radiofônica é o que apresenta esse lugar, destacando a distância e o deslocamento geográfico, constituídos de uma acessibilidade escassa, e de uma religiosidade marcante. A personagem Iracema reage ao mundo real, das famílias que viajam nas embarcações, que trabalham com a extração do açaí e negociam sua venda para a capital. É um recorte do cotidiano de pessoas que vivem em função do rio e do que a natureza lhes oferece.

Em seguida, há uma sequência de cenas na cidade de Belém, como a chegada ao mercado do Ver-o-Peso, as comemorações da tradicional procissão do Círio de Nazaré e o movimento das ruas, das casas noturnas e das aglomerações locais. É uma realidade mais cosmopolita em relação à vida ribeirinha apresentada anteriormente, mas continua propondo um olhar aguçado, nas subjetividades do povo e da cultura regional.

Nessa primeira parte do filme, Tião realiza uma entrega de madeira que o levou para Belém, e conversa com os trabalhadores que fazem o desembarque das tábuas. É um diálogo surpreendente em sua verossimilhança e na apresentação tão poderosa da figura que representa Tião Brasil Grande. É uma personagem rica ao se construir tanto na presença do ator, Pereio, com seu jeito malandro e altivo, quanto no caráter fictício de Tião. Em Era uma vez Iracema, 2005, making of do longa de 1974, Paulo César Pereio afirma "Eu acho que Tião Brasil Grande é o Pereio, até hoje eu me comporto daquela maneira". Na mesma obra, o diretor Jorge Bodanzky conta como funcionou o processo de gravação, as personagens não tinham falas específicas, então os diretores montavam o contexto da cena, e então o elenco improvisava. (BONDANZKY, 2005)

Assim como contou com uma equipe pequena de produção, Iracema, uma Transa Amazônica também teve a presença de pouquíssimos atores, sendo que Pereio era um dos únicos com especialização profissional. Edna de Cássia, que interpreta Iracema, era apenas uma menina paraense, sem nenhuma pretensão em ser atriz, que foi encontrada pelos diretores de forma inusitada em um evento social de Belém (BONDANZKY, 2005). No filme, seu primeiro encontro com Tião ocorre em um bar, onde eles estabelecem uma conversa, entre danças, cigarros e uma música que chora no alto falante. Pereio conduz a conversa, enquanto Iracema o acompanha na interpretação. No limiar entre representação e o uso da figura real dos dois atores, Ismail Xavier coloca:

O esquema dramático que envolve Tião Brasil Grande e Iracema exige que esses dois intérpretes se movam em direções opostas. Ele é o simulador (desenvolvido) que domina a representação e sabe que seu papel é citar Tião Brasil Grande e, ao mesmo tempo, continuar a mostrar-se Pereio. Ela é a atriz que procura interpretar seu papel (a da moça Iracema), mas não consegue dominar a representação e vê seu trabalho desajeitado converter-se em uma citação de si mesma, de sua condição real de origem, enquanto tenta ser a personagem (XAVIER, 2004, p.83).

A interpretação na personagem de Iracema, de fato, se consolida no uso das características, falas e vida de Edna, que imprimem uma autenticidade e verdade muito potentes. Ela caminha entre as duas representações, garantindo que a narrativa ficcional prossiga, ao passo que empresta para a personagem toques pessoais, nuances de sua fala jovem, de sua teimosia, graça e alegria. As duas compartilham um enredo cultural e regional, que tornaram a caracterização tão única e espontânea.

Ao embarcar no caminhão de Tião, ambos permeiam sobre diversos lugares ao longo do trecho da Transamazônica, em sítios de extração de madeira ilegal, imergindo na realidade de caminhoneiros, madereiros e grileiros, e nos caminhos fechados que a estrada não abriu, mas onde a natureza já foi explorada. Eles passam por estabelecimentos pequenos na beira da estrada e evidenciam a vida de quem ali vive, de uma forma bem natural e espontânea. Pereio segue dominando a configuração das cenas, principalmente nas conversas com essas pessoas, ele age e reage com perguntas e respostas pertinentes, trazendo eles para dentro da cena junto com ele, e os permitindo compartilhar suas vivências diante da câmera.

A vida na beira da estrada é extremamente rural e pobre, com poucos recursos e conhecimento das leis, os habitantes sofrem golpes constantes daqueles que se apropriam das terras, e sem documentação são expulsos, cada vez mais explorados pela classe dominante acima deles. Os relatos são fortes, em um encaixe social que poderia ser utilizado nos documentários do modelo sociológico, mas sem as narrações e exposição de um ponto de vista limitante. Aqui, Pereio é a voz que contrapõe as falas do povo, apenas para instigar e acentuar os relatos expostos. Nessas pessoas que são filmadas e se tornam personagens, Comolli afirma:

"Eles nos fazem conhecer e reter, antes de tudo, que existem fora do nosso projeto de filme, somente a partir daquilo que farão conosco desse projeto (e, às vezes, contra nós) que se tornarão seres do cinema. Isso demonstra o quão pouco, na entrada do jogo, estamos em condições de lhes dar ordens (podemos oferecer, no máximo, indicações), de chacoalhar sua própria mise-en-scène (ao contrário, trata-se de deixá-la aparecer em primeiro plano), de interromper ou alterar o curso de suas ações (a não ser o tempo suspenso de uma filmagem)" (COMOLLI, 2008, p. 175)

Os detalhes do Brasil interiorano são fundamentais para a imersão na realidade do filme. A narrativa prossegue com Iracema sendo expulsa do caminhão de Tião, em uma cena improvisada de uma Iracema relutante, ela desce abrindo as portas para uma vida ainda mais cheia de degradações. Junto com sua amiga (Conceição Cena), que também é prostituta, vivencia a violência de um mundo sem leis – o filme retrata a exploração do trabalho de pessoas que não são donas nem de seu próprio corpo e documento. Na realidade esmagadora, Iracema definitivamente pertence ao mundo, com seu destino perdido nas faixas de estrada.

Ela continua em um movimento circular, e tenta a vida em diferentes lugares pequenos. Trabalhando em um estabelecimento para viajantes, ela lava pratos e serve comida, e marca uma sequência intensa do longa, que expõe todas as questões identitárias e a forte supressão do passado indígena no Brasil. Ela chora, ao se deparar com a necessidade de servir uma mesa de indígenas, se sente rebaixada e humilhada. Edna comenta sobre a cena, como o choro foi real, e surgiu de sua recusa em ser associada como indígena, ela conta em Era uma vez Iracema, 2005. Novamente, as fronteiras entre o real e o ficcional sendo escancaradamente cruzadas.

A trajetória dessa personagem tão singular em representar a mulher brasileira toma uma resolução em seu último encontro com Tião Brasil Grande. Iracema deixou toda a sua inocência para trás, está abandonada no mundo, com sua imagem jovem marcada pela falta de cuidados. Tião, por outro lado, como uma personificação do progresso que a Transamazônica propõe, agora cuida de gados, tem sua aparência ainda mais limpa e renovada. Ela está em uma casa abandonada, rodeada por outras mulheres, com histórias não muito diferentes da dela, que riem para o nada e falam besteiras. Tião invade esse espaço e brinca com elas, jogando piadas e bebendo cachaça. Inicialmente, ele não se lembra de Iracema, mas ao reconhecê-la, rapidamente a rejeita, porque ela já está fragmentada, com as marcas que o mundo e a violência deixaram, não é mais a jovem e bela menina que ele tirou do berço e jogou na vida. Ele se permite observar a degradação que ela expõe, mas só por um momento, porque o dinheiro chama, junto com a promessa pelo progresso.

Iracema o segue até ele ir embora, pergunta porquê ele não fica ali, pede por alguns trocados de dinheiro. Mas novamente, Tião a abandona sozinha em um lugar qualquer. Como posto por Hector Babenco, Tião era exatamente a representação do sonho de realização pessoal e financeira dos brasileiros, de ocupar um espaço (BONDANZKY, 2005). Um sonho que foi estraçalhado na partida de seu caminhão, deixando Iracema xingando, bêbada, suja, toda descabelada, sem dente, calçando apenas um lado de uma bota velha.

Dentro do cenário brasileiro, Iracema, uma Transa Amazônica é um dos filmes mais potentes em marcar, de uma forma tão cinematográfica, um cinema documental e ficcional, que carrega em suas fronteiras as nuances de um povo sofrido pela exploração nas políticas da ditadura militar. Mais que retratar a figura da mulher brasileira de um ângulo tão precário, ele expõe toda uma época, concentrada nas margens do país, na ideia do progresso que tentava ser erguido a todo custo. Ele expõe as problemáticas que a nação enfrenta, faz perguntas pertinentes e coloca o próprio povo para respondê-las. Essa construção é possível a partir da simbiose esmagadora entre os dois gêneros, que carregam uma obra cheia de significados, cheia de pessoas, de vozes e rostos, em uma representação tão pura do ato de se fazer cinema.


 

BIBLIOGRAFIA E FILMOGRAFIA

COMOLLI, Jean-Louis.Ver e poder. A inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2008.

ERA UMA VEZ IRACEMA. Direção: Jorge Bodanzky. Brasil: [s.n.], 2005. 45 min.

IRACEMA: uma transa amazônica. Jorge Bodanzky e Orlando Senna. Brasil/Alemanha, cor, 1977. 1 DVD.

XAVIER, Ismail. Iracema: o cinema verdade vai ao teatro. Devires: cinema e humanidades. Belo Horizonte, v. 2, n. 1, p. 71-85, jan./dez. 2004.









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